Marte - da exploração à colonização...
Por Ronaldo Rogério de
Freitas Mourão
Marte
é o astro que mais impressionou as mentes primitivas em virtude de sua
coloração avermelhada que fez que fez com que fosse associado às
divindades guerreiras em quase todas as mitologias. O seu símbolo é
a união da lança com o escudo. Os caldeus lhe deram o nome de Nergal
- deus dos infernos - em alusão ao mestre das batalhas e
campeão dos deuses, entidade de grande poder destruidor, na mitologia
babilônica.
No
Egito antigo, o planeta foi conhecido pela designação de
Hardaquer, ou seja, Horus Vermelho, em virtude de sua cor
encarnada, segundo o historiador francês G. Maspero (1846-1916) em
Histoire ancienne des peuples de I´Orient (1894-99). Horus -
deus e falcão - foi muito popular no Egito. Era considerado
a grande divindade do céu e dos astros, assim como o falcão é o
rei dos espaços aéreos.
Na Índia, com o nome de Anguaraguem (de anguara, carvão ardente),
era adorado como uma divindade. De acordo com o astrônomo francês F.
Arago (179-1853), em Astronomie Populaire (1894), os
indianos o nomeavam também de Labitangua, isto é, astro
vermelho (de lobita, vermelho, e angua, astro). Sua
influência era considerada maléfica.
Os gregos o designavam de Ares (de Aro, matar) - nome da
divindade da guerra - que correspondia a Marte na mitologia
romana. Deu origem aos vocábulos areografia, descrição da superfície de
Marte, e areógrafo, aquele que estuda os aspectos físicos do
planeta.
Em geral, o planeta de dois em dois anos, por ocasião de sua
oposição, brilha como um astro de primeira magnitude.
Não foi o seu brilho que impressionou o homem ao longo da
história, mas, sim, a sua tonalidade muito avermelhada. Até
recentemente, desconhecendo a sua natureza, esta coloração, quando
associada às épocas de máximo brilho, provocou pânico em um grande
número de pessoas, como ocorreu em Nova York e na cidade do
México durante a oposição de 1924. Por ocasião da máxima aproximação de
2003, recebi telefonemas de pessoas preocupadas com a possível
presença de um objeto não-identificado, de um astro novo ou mesmo de
um sinal de natureza extraterrestre.
A mais antiga observação do planeta foi realizada há pelo menos
dezessete séculos antes de Cristo. São as observações de Bel,
escritas em caracteres cuneiformes encontrados em tábuas nas ruínas de
Nínive, capital da Assíria, que contêm um livro totalmente dedicado
ao planeta Marte.
Foi a observação do movimento de Marte, realizada a olho nu
pelo astrônomo dinamarquês Tycho-Brahe (1546-1601), durante 21
anos, que conduziu o seu colega alemão Johannes Kepler (1571-1630) à
descoberta das leis que regem o movimento dos planetas ao redor do Sol.
Assim, substituiu-se o círculo pela elipse.
Com o emprego da luneta por Galileu Galilei, em 1610, surgiu uma
nova época. Já era possível observar a superfície dos corpos
celestes. Galileu registrou o contorno de Marte. No entanto, só em
1659, o astrônomo holandês Christian Huygens (1629-1675) observou e
desenhou Sytis Maior - Golfo Maior - a mais
proeminente mancha escura do planeta. Em 1676, o astrônomo francês
Dominique Cassini descobriu as calotas polares. Mais tarde, em 1783,
o astrônomo inglês Sir William Herschel (1738-1822) registrou a
mudança de tonalidade nas manchas escuras, e anotou, pela
primeira vez, as tão faladas alterações sazonais das calotas
polares, sugerindo mesmo que elas fossem constituídas de gelo.
Um dos mais sistemáticos observadores de Marte foi o
astrônomo alemão Johann Hieronymus Schröter (1745-1816), que
o observou por mais de 18 anos em seu observatório de
Lilienthal. Schröter. Concedeu especial atenção às manchas escuras, às
calotas polares, às deformações aparentes e acidentais de
Marte, à direção do eixo, às particularidades do movimento, à posição de
Marte na elíptica e ao diâmetro aparente do planeta. Convém
ressaltar que foi Schröter o primeiro astrônomo que observou
e estudou as nuvens da atmosfera marciana.
Os primeiros mapas da superfície marciana são os de J.D. Cassini
(1666), Maralde (1719), Herschel (em 1777 e 1779), Schröter (1798),
Dawes (1864) e Kaiser (1864), todos ótimos observadores, mas
péssimos desenhistas. Só a partir de R.A. Proctor, em 1869, é que
surgiu o primeiro mapa de real valor. Cumpre assinalar,
porém, que os mapas de Beer e de Madler, em 1830 a 1841, se bem que
imprecisos, representam para a areografia, como salientou o pesquisador
italiano Giovanni Schiaparelli, o que a carta de Eratóstenes foi para a
geografia terrestre há 2.000 anos.
A bela carta areográfica de Proctor reúne todos os conhecimentos
sobre a superfície de Marte até aquela época. É nessa carta que ele dá o
nome de "mares" às regiões escuras e de "terras", "continentes",
"ilhas" e "rios" às regiões claras, por analogia com os acidentes
terrestres, e que, posteriormente, se revelou falsa.
Houve um momento na História da Astronomia em que a imaginação e
a criação do cientista muito se aproximaram da do
escritor de ficção científica. Nessa época, fins do
século XIX e início deste, as interpretações das
observações realizadas pelos astrônomos constituíram o elemento
principal das motivações para as histórias de marcianos. Tudo começou
durante a posição periélica de 1877, em três países: Brasil,
Estados Unidos e Itália. De fato, quase que simultaneamente os estímulos
surgiram, inclusive no Brasil, talvez para espanto daqueles que pouco
conhecem a memória nacional. Em nosso país, enquanto o astrônomo
brasileiro de origem belga Louis Cruls (1848-1908) observava e
determinava o período de rotação do planeta Marte, o seu
colega francês, Emmanuel Liais (1826-1900), na época diretor do Imperial
Observatório do Rio de Janeiro, emitia a hipótese de que as variações
de coloração das manchas escuras da superfície marciana
estavam associadas às mudanças climáticas (períodos de seca e
umidade) reinante na atmosfera do planeta ao longo das quatro
diferentes estações do ano marciano.Na Itália, o astrônomo milanês
Giovanni Schiaparelli (1835-1910),no Observatório de Milão desenhava uma
rede de canais na superfície do planeta vermelho, que os astrônomos
logo em seguida iriam, com entusiasmo, supor serem canais artificiais
de irrigação num planeta árido. Por outro lado, nos EUA, o
astrônomo norte-americano Asaph Hall (1829-1907), ao lado de sua
esposa Angelina, no Observatório Naval, em Washington, descobriu os
satélites Fobos e Deimos.A descoberta desses satélites,previstos
anteriormente por Kepler em carta a Galileu,pelo escritor inglês
Jonathan Swift (1667-1745) e,pelo filósofo e escritor Voltaire
(1694-1778),serviu de grande estímulo para os que desconheciam as
razões científicas destas previsões, não só entre o povo,mas também
entre os escritores de ficção-científica.
Assim, constituía-se a primeira cena que os anos seguintes iriam
teatralizar na forma de um planeta com uma civilização ultra-avançada
e povoado por marcianos belicosos, talvez em razão de Marte,
desde a Antigüidade, estar associado à guerra.
As observações de Marte passaram a ser cada vez mais ricas
em detalhes sobre os canais de Schiaparelli e as
vegetações de Liais. Elas evidenciaram, de modo eloqüente para a
época, que os marcianos existiam de fato. Lá estariam os canais
artificiais de irrigação, capazes de levar a água proveniente do
degelo das calotas polares ao equador, provocando as alterações
cromáticas da vegetação. Para confirmar, era suficiente ler os
livros dos mais importantes astrônomos da época, dentre eles os
norte-americanos Percival Lowell (1855-1916) e William Pickering
(1858-1938).
Em 14 de julho de 1965, a primeira sonda - Mariner 4 -
sobrevoou o planeta, enviando as fotografias que mostraram
uma superfície craterizada, sem canais ou água corrente. Detectou
muito dióxido de carbono na atmosfera e uma pressão estimada
em 1% da existente ao nível do mar na Terra. Estava desfeito o
sonho da civilização marciana tecnologicamente superior à terrestre.
Após uma série de outras sondas terem sobrevoado Marte, com o
objetivo de cartografar a superfície do planeta, realizando-o com
sucesso, os norte-americanos lançaram duas sondas-robôs Viking 1
e 2, capazes de aterrizar no planeta. Uma delas efetuou uma
série de testes biológicos no solo marciano, com a finalidade de
detectar sinais de vida. Alguns resultados foram positivos e
outros negativos, não concluindo coisa alguma. Até hoje, no entanto,
a possibilidade de vida rudimentar parece pouco provável.
Embora tudo indique que as condições atuais de Marte sejam hostis
à vida, as fotografias obtidas pela nave Mariner 9, em
1972, revelaram a existência na superfície do planeta de uma intensa
erosão pela água num passado muito remoto, idéia confirmada pela
Mars Express, em 20 de janeiro de 2004. Tal interpretação
pressupõe que a atmosfera marciana tenha sido muito mais densa do que
é atualmente, assim como as condições de pressão,
temperatura e umidade se mostrassem mais toleráveis à
vida. Assim sendo, apenas alguns microorganismos e outras
formas semelhantes seriam adaptáveis ao clima marciano. Apesar
da desolação das primeiras paisagens transmitidas pelos robôs Spirit
e Opportunity nos últimos dias, e dos resultados
negativos das sondas Viking, em 1976, acerca da existência de
vida em Marte, evemos convir que esta conclusão, em termos
definitivos,é absurda, pois as sondas pesquisaram apenas três pequenas
áreas do planeta. Estamos, portanto,diante do difícil e complicado
problema da demonstração de uma negação. Para saber se existe ou
existiu vida em Marte, teremos que esperar por novas pesquisas.
De uma coisa, porém, podemos estar certos: a vida não é uma
exceção no nosso universo de planetas, estrelas e
nebulosas, mas uma parte integrante de sua estrutura geral, e a
inteligência, uma propriedade da matéria orgânica, como tenho
divulgado nas últimas três décadas. A vida surgirá naturalmente, do
substrato inorgânico, nos lugares e nos momentos em que as condições
tornem possível o seu desenvolvimento. Assim como a inteligência se
desenvolverá do substrato orgânico se encontrar condições favoráveis.É
impossível fixar um limite nítido entre os mundos orgânico e
inorgânico. Não se pode tampouco situar o ponto onde se inicia a
inteligência na evolução biológica. Existe uma única unidade na
natureza, uma única realidade que engloba tudo.
O atual estágio do conhecimento acumulado ao longo dos anos
sobre Marte, através dos programas de exploração do
planeta pelas sondas robôs que sobrevoaram e desceram na superfície
marciana, visa levar o homem a Marte, a grande meta espacial do
início do século XXI .
A terraformação de Marte
A idéia dos novos pioneiros, dentre eles Robert Zubrin, não
é somente ir a Marte; eles desejam transformá-lo
num planeta habitável e, deste modo, duplicar a superfície que a
humanidade poderá dispor no sistema solar. Sua concepção é
transformar o planeta vermelho numa segunda Terra. Para
isto, será necessário terraformar (terraforming),
o planeta, ou seja, utilizar os recursos do próprio astro
para criar uma atmosfera respirável, com rios, mares,
florestas, bosques, etc. Tal operação é o mais audacioso projeto de
"engenharia civil" jamais concebido pela mente humana.
Aliás, convém assinalar que a própria atmosfera terrestre
atualmente rica em oxigênio, não o foi no início. A nossa
atmosfera foi transformada pela ação de bactérias primitivas nas épocas
iniciais da sua história. A proposta dos defensores da
terraformação é a de introduzir estes organismos simples capazes
de produzir uma biosfera na superfície de Marte ou de outros
quaisquer corpos celestes. Na realidade, o planeta vermelho tem todas as
condições para que a terraformação seja possível. Por um lado, os
estudos científicos sugerem que existem indícios, segundo os quais o
subsolo do planeta vermelho contém uma enorme quantidade de
gelo, no interior de seu solo congelado, como o permafrost
siberiano. Por outro lado, se o gás carbônico congelado das suas
calotas polares fosse liberado na atmosfera marciana, ocorreria um
efeito estufa e, em conseqüência, um reaquecimento do clima do
planeta. Uma vez iniciado este processo de aquecimento, a
temperatura mais elevada aceleraria o degelo das calotas polares e do
permafrost subterrâneo. A partir desse momento, o planeta
vermelho teria um clima mais ameno, em sua superfície surgiriam
rios e lagos, assim como uma vegetação que poderia ser levada da
Terra.
Para dar início a este processo, Robert Zubrin propôs que se
colocassem ao redor do planeta grandes espelhos capazes
de focalizar a luz solar sobre os pólos marcianos. Outra solução seria
cobrir as calotas polares com uma camada de poeira que absorvesse
o calor solar, com o objetivo de acelerar o degelo.
Os menos otimistas questionam que seriam necessários séculos para
que a atmosfera de Marte se tornasse mais densa e mais quente, para que
a água começasse a fluir em sua superfície. No entanto, convém notar
que não seria preciso atingir os últimos estágios de terraformação
para que se iniciasse o seu povoamento.
Na atualidade, um dos grandes defensores dos ciclos ecológicos
fechados e da exploração dos recursos extraterrestres é o
engenheiro norte-americano Robert Zubrin, principal
líder do movimento espacial norte-americano, depois do
desaparecimento de Gerard O?Neill, e um dos fundadores da Mars
Society, criada com objetivo de promover uma conquista
rápida de Marte. Para Robert Zubrin, será possível enviar astronautas
para o planeta Marte nos próximos dez anos, com um custo de 50 bilhões
de dólares, despesa inferior à da Estação Espacial
Internacional.
Zubrin planejou uma reduzida expedição a Marte com um modesto
veículo espacial que utilizasse quase somente recursos
recicláveis. Uma das propostas mais avançadas é a exploração
das fontes marcianas capazes de produzir os combustíveis
necessários às naves de regresso à superfície terrestre.
Imagina-se que esta técnica poderá ser rapidamente desenvolvida,
podendo servir, desde os primeiros anos do século XXI, para as
próximas missões automáticas de reconhecimento da superfície
do planeta vermelho.
Zubrin não é um mero visionário: as suas exposições vêm sendo
confirmadas por experiências realizadas em seu laboratório do Colorado,
onde testou um aparelho capaz de fabricar propergóis a partir
dos gases existentes na atmosfera marciana. Tal sistema poderá ser
colocado na superfície do planeta Marte e, deste modo, reabastecer
as sondas que deverão trazer as amostras para a Terra nos próximos
anos. Uma versão maior deverá ser utilizada mais tarde pelos
veículos que transportarão os primeiros exploradores humanos do solo
de Marte à superfície terrestre. Para reduzir os gastos
durante essas viagens, será possível também fazer uma escala de
ida-e-volta a Fobos - um dos dois pequenos satélites de Marte - de onde
serão extraídas água e matérias orgânicas, importantes para a vida
dos eventuais astronautas assim como para a produção dos
combustíveis no próprio local.
Ronaldo Rogério de
Freitas Mourão - Doutor pela Universidade de Paris (Sorbonne),
é membro titular do
Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (IHGB); astrônomo e pesquisador
titular do Museu de Astronomia e
Ciências Afins
do Rio de Janeiro, do qual foi o criador e
primeiro diretor. Primeiro Prêmio José Reis do
CNPq (1979) é
autor de mais de 70 livros, dentre eles o
Dicionário Enciclopédico de Astronomia e
Astronáutica
- 2ª edição revista e ampliada -, o único dessa
especialidade no mundo com mais de 30.000
verbetes.
|